terça-feira, 4 de agosto de 2015

Começar de novo

"Uma das fatalidades da idade adulta é perdermos a sensação de que podemos começar de novo. 'Não temos mais princípios', definiu com acuidade George Steiner, dando corpo a um sentimento de perda de esperança e de declínio da criatividade nas nossas sociedades. Talvez no contraponto a esta impressão de declínio se encontre a resposta para o deslumbre e a paixão gerados pelo futebol.
No futebol temos sempre mais princípios e as novas épocas iniciam-se em ruptura com as anteriores. De pouco serve a glória de vitórias passadas ou as taças erguidas há um par de meses. Agora, nada disso existe. Penso, claro está, no 'nosso Benfica', mas a verdade é válida para todos os clubes. Este novo princípio tem consequências desportivas e exige dos jogadores uma atitude competitiva permanente, mas vale em igual medida para os adeptos.
Pier Paolo Pasolini, que escreveu extraordinários textos sobre o desporto-rei, afirmou que 'o futebol é uma doença juvenil que se prolonga pela vida fora', para sublinhar que, tal como na infância, estamos sempre, em todas as jogadas, por mais estudadas ou treinadas, perante uma invenção, uma subversão dos códigos, algo de irreversível e irrepetível. Acrescentou mesmo que 'o futebol é a última representação sagrada do nosso tempo'. Uma combinação de ritual com evasão, que persiste, enquanto todos os outros ritos se encontram em declínio.
A ansiedade que chega com cada início de temporada, o entusiasmo com que vislumbramos indícios de um craque numa nova contratação ou a forma como contamos os dias até nos sentarmos de novo numa bancada são últimos redutos de uma vitalidade infantil que, em todos os outros lugares, se vai perdendo. O futebol regressa no domingo e voltaremos a ser crianças 'selvagens e sentimentais'. Saibam os jogadores estar à altura dessa responsabilidade."

O licenciamento de clubes

"A cruzada do Gil Vicente contra os incumpridores e pela igualdade desportiva, independentemente dos motivos e do timing, aplaude-se e suscita reflexão. Existem clubes/SAD que, aproveitando-se da ausência de regras adequadas quanto ao acesso, controlo e sancionamento, ofendem a integridade das competições e o direito ao salário dos jogadores. Sendo o futebol uma actividade empresarial regulada, que gera milhões, com impacto social, é aceitável que os infractores sejam beneficiados e coloquem em causa a credibilidade da competição? Não.
SE é certo que devemos ajudar os que, pontualmente, têm dificuldades, não é menos verdade que devem ser punidos e erradicados os que, reiteradamente, incumprem. Fazem-no escudados em clubes históricos que vêem o seu património delapidado. Acresce que não pagando, beneficiam de todas as vantagens de quem paga, nomeadamente da actividade do jogador e da sua imagem, bem como dos demais proveitos. Inaceitável.
COMO é então possível que este espectro atravesse as competições e as entidades competentes, Governo, FPF e, em particular, a LPFP e os clubes não ponham termo a este calvário? Na minha opinião, o futebol ganhou um estatuto que ninguém ousa questionar; porque este Governo, tendo maioria, não teve coragem; porque a LPFP na verdade não é entidade organizadora mas sim patronato; porque os clubes mais poderosos têm preferido o silêncio; e porque os clubes beneficiam, em diferentes momentos, deste regime escandaloso.
quem hipocritamente diga que a culpa é dos jogadores! Infelizmente, salvo em alguns casos, são vítimas. Dependem do salário, precisam do emprego, sofrem represálias, estão fragilizados. O ónus da prova do pagamento dos salários compete à entidade patronal. Não compete ao jogador. Ponto. O contrário é inverter esse ónus.
QUANTO aos jogadores que nunca passaram por esta situação, podem e devem ser solidários, porque um dia lhes poderá acontecer e porque todos os dias perdem o respeito que outros levaram anos a conquistar. 
DISTINGUINDO entre as instituições, clubes e dirigentes que merecem respeito e confiança, exige-se ao futuro Governo, à FPF, em especial à nova direcção da LPFP que em conjunto com o SJPF garantam um modelo eficaz.
NÃO fazer nada potencia, ainda, as más práticas, por exemplo, os resultados combinados. Um tema que, oportunamente, abordarei."

FIFA: organização criminosa

"1. Nino Pulvirenti, presidente do Catania, acaba de ser condenado, tanto pela justiça desportiva como pela civil que neste processo trabalharam em conjunto, de ter comprado na época finda 6 resultados (5 vitórias e 1 empate) de jogos da Série A. O que de nada serviu para evitar a despromoção directa. Mas como, entretanto, foi descoberta a traficância, o tombo foi ainda maior: caiu nos campeonatos regionais de amadores (Série D). Como é habitual por esta altura (menos por cá), em perigo de descida administrativa há mais 6 equipas, todas da Série B e Liga Pró, cujo (mau) destino será conhecido em meados deste mês. 
Tudo isto, porém, que não deixa de ser muito grave, são bagatelas em comparação com o que aconteceu e continua a acontecer durante o blatterismo da FIFA, ela que deveria ser o garante e último reduto da transparência e integridade. Vejamos porque não é:
a) ninguém, há mais de 20 anos, sabe quanto ganha Blatter: 20 milhões de euros/ano é uma cifra plausível;
b) a reforma do Organismo está blindada, tantos são os estorvos a ultrapassar;
c) entre 2011 e 2014 a FIFA arrecadou em receitas 6 mil milhões (!) de euros, mas ninguém sabe dizer onde esse vagão de ouro foi parar;
d) a International Board, criada há um século e meio, é um arcaico anacronismo;
e) a cadeira do departamento que mais milhões garante à entidade é ocupada pelo presidente do Botswana, Tebego Sebego, um cabeça de turco que nada risca;
f) a FIFA, que é (devia ser) uma entidade sem fins lucrativos, converteu-se numa holding que controla 12 sociedades, entre as quais hotéis, restaurantes, agências de viagens, museus de gastronomia...
E isto é apenas uma pequena amostra daquilo que se ignora.
2. Não é justo que um clube (Gil Vicente) que cumpre escrupulosamente as suas obrigações salariais, fiscais e sociais, seja penalizado em proveito de outros (V. Setúbal, Boavista...) para quem isso é chinês, que branqueiam com a pantomina de certidões mentirosas das Finanças locais. Toda a gente sabe disso."

Manuel Martins de Sá, in A Bola

Como nos filmes: Beleza Americana!

"A primeira viagem do Benfica (e de um clube português) aos Estados Unidos teve lugar em Agosto de 1957. Em dois jogos, o Benfica marcou 17 golos. Na estreia, em Fall River, venceu por 10-0 a Selecção de Nova Inglaterra. Abriu uma porta que continua aberta.

Não sei se é por causa das águias (cada um tem a sua), mas Benfica e Estados Unidos dão-se bem. Desde 1957 até aos dias que correm, as coisas passam-se como na velhinha anedota das voltas que o cão dá antes de se deitar: volta e meia há uma visita. Agora, no mês de Julho, eis outra.
Por todo o lado do grande país da América do Norte andou o Benfica nas suas digressões: de Nova Iorque («a city that never sleepes», como cantava o «Old Blue Eyes» de Hoboken) a Fall River, Massachusetts; de Los Angeles, EL Pueblo de Nuestra Señora la Reina de los Angeles del Río de Porciúncula, a São Francisco da Golden Gate e dos eléctricos a lembrar Lisboa; de Boston e New Bedford e Foxborough pejadas de portugueses, a Hartford, no Connecticut; se San José, cidade-gémea do Funchal, a Providence e Pawtucket, Rhode Island; de Newark (do Ironbound) à minúscula e suburbana Secaucus, terra das cobras.
Como vêem, dificilmente algum clube estrangeiro conhecerá tão bem as terras do Tio Sam.
Mais de quarenta jogos realizados um pouco por toda a parte.
E agora, que mais uma vez demanda a América do Norte, falo do mês de Agosto de 1957 quando a águia vermelha para lá voou pela primeira vez.
Nenhum resultado poderia ser mais redondo: 10-0. Como nos filmes!
O adversário, pomposo, denominou-se Selecção de Nova Inglaterra.
Pois bem, Nova Inglaterra não é um Estado, não senhor, é uma região que inclui os Estados do Connecticut, Maine, Massachusetts, New Hampshire, Rhode Island e Vermont. Enfim, tanto Estado e tão pouco Futebol, admiraram-se os portugueses nesse primeiro confronto.
A coisa foi de tal modo redonda e arredondada que, acabado aos 10, também mudou aos cinco como nas peladinhas de escola da saudosa infância: isto é, 5-0 ao intervalo.
Ameaços, havia-os. Quero eu dizer, os ameaços eternos de que um dia... um dia... os americanos serão, quando lhes der na veneta, os reis do Futebol do Mundo, tal como o são em tantos outros desportos. Leia-se a crónica da época: «Os Americanos teimam em não levar a sério o desporto que na América do Sul e na Europa mais apaixona as multidões. É possível que as periódicas visitas de equipas de reconhecida categoria - e o Benfica é uma delas - contribuam para que, embora lentamente, venham fazer com que se interessem a fundo pela prática do futebol. Será então, se assim suceder, um 'caso sério'...».
Sério? Será? Por mim, que leio esta lengalenga espalhada ameaçadoramente pelos jornais de todo o Planeta, espero sentado. Sempre é mais confortável.

Os golos do Águas e as fintas do Palmeiro
Como em tudo, o Benfica voltava a ser o grande pioneiro do Futebol português. Os norte-americanos já tinham tido a oportunidade de ver entre eles o famoso Vasco da Gama, do Brasil, e algumas das mais conhecidas equipas inglesas, por via da natural proximidade cultural, mas um conjunto lusitano era inédito.
Finalistas recentes de mais uma edição da Taça Latina (derrotado em Chamartín pelo Real Madrid por 0-1), os 'encarnados' disputavam em Fall River e Nova Iorque os dois encontros derradeiros de um digressão de mais de um mês (de 4 de Julho a 12 de Agosto) que os levava ao Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Santos e São Paulo.
Por isso, após pelejas competitivas contra Flamengo, o Santos, o América FC e o Palmeiras, «treinar» contra a tal Selecção da Nova Inglaterra era para meninos de colo.
E a estreia (em beleza) americana foi assim:
NOVA INGLATERRA - Nogueira; Sprinthorpe e Allison; Arruda, Martins e Bernardo; Furtado, Silva, Schattner, Felix e Miller.
BENFICA - Costa Pereira; Zezinho e Ângelo; Pegado, Serra e Alfredo; Palmeiro, Caiado (depois Azevedo), Águas, Coluna (depois Salvador) e Cavém.
Golos: 1-0, Coluna (10m); 2-0, Caiado (18m); 3-0, Águas (27m); 4-0, Águas (30m); 5-0, Bernardo na própria baliza (33m); 6-0, Salvador (49m); 7-0, Pegado (58m); 8-0, Azevedo (68m); 9-0, Salvador (78m); 10-0, Palmeiro (89m).
Composto por amadores, muito deles da grande comunidade portuguesa da região, o adversário do Benfica foi imolado como um cordeiro em Domingo de Páscoa. Mais de 15 mil espectadores puderam testemunhar e aplaudir a classe de Coluna, os remates de José Águas e as fintas de Salvador e de Palmeiro.
Abria-se uma nova porta para as viagens do Benfica que eram muitas e seriam cada vez mais, alicerçadas nos êxitos europeus dos anos-60.
Em Fall River, assinalava-se o 76.º encontro benfiquista fora do território português. Depois da presença em África e na América do Sul, inaugurava-se um novo Continente. O regresso só se daria nove anos mais tarde, em Agosto de 1966.
A despeito das fragilidades dos opositores, Otto Glória não baixou a guarda ao seu estilo profissionalão e rígido. As festas de homenagem, as visitas de cortesia, eram levadas a cabo pelos dirigentes e pelo técnico, mantendo-se os jogadores num internamento tão severo como se os jogos fossem a doer.
Apenas um cheirinho a folga em Newark, com direito a jantar na Cervejaria Ballentine e, em seguida, a uma recepção do Clube Português de Brooklyn. Jantar à moda de antanha, acrescente-se, porque o recolher era impreterivelmente às oito da noite.
Antes do regresso a Lisboa, no voo da Pan-Am, mais uma vitória: 7-2 sobre a Selecção da Liga Norte Americana, em Nova Iorque.
Depois voltava o campeonato e vinha a primeira participação na Taça dos Campeões Europeus.
Férias? Levava-as o vento..."

Afonso de Melo, in O Benfica

Uma experiência inédita

"O Benfica inscreveu o seu nome em mais um capítulo da história do desporto. Para o alcançar juntou: uma bola branca, lâmpadas e uma banda de música.

No início da época 1919/20, 'O largo espírito de iniciativa do Benfica lançou o Clube noutra novidade para o nosso meio desportivo e, até, para a Europa (...)'. A proposta, bastante arrojada para a época, era nem mais nem menos que a realização do primeiro jogo nocturno, sob iluminação artificial em Portugal. A ideia partiu de Cosme Damião, que terá tido conhecimento dessa prática durante a viagem que efectuou ao Brasil em 1913.
O evento decorreu no dia 10 de Setembro, no campo da Quinta de Marrocos, que encontrava '(...) todo iluminado (...)'. Para o conseguir, foram utilizados 18 reflectores de 1000 velas, dispostos à volta do tereeno de jogo. Como complemento, nos camarotes e nas bancadas, foi instalado '(...) um número elevado de lâmpadas encarnadas e brancas, colocadas alternadamente, de modo a produzir excelente efeito de conjunto'. Após as 22 horas, teve início o desafio, disputado com o recurso a uma bola forrada a lona branca, para ser mais visível. Este jogo contou também com banda sonora, literalmente, pois 'Durante o desafio tocou uma banda de música'.
Para adversário, o Benfica convidou outros clubes da 1.ª categoria a formar um grupo misto. Apenas o Império de Lisboa, o Internacional e o Vitória de Setúbal aceitaram. Segundo O Sport Lisboa, o Sporting justificou a recusa alegando '(...) estarem os seus jogadores destreinados e não quererem jogar n'esta época de calor'.
Este jogo não foi caso isolado. Dez dias depois, repetiram a iniciativa frente ao Vitória de Setúbal. Ficou por aí. Os jogos nocturnos não voltaram a disputar-se em Portugal durante décadas.
No Museu Benfica - Cosme Damião encontra referência a este acontecimento na área 15. No caminho do tempo e no filme da área 29. O Voo da Águia, que estreou no passado dia 26 de Julho."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica