terça-feira, 3 de março de 2015

"Aqui, dentro do campo, quem manda sou eu!"

"Já  disse e repito: faltou a Coluna um poeta que o escrevesse. Coluna: dificilmente um nome lhe ficaria mais a propósito. Firme, inquebrável, sério. A sua figura encheu os campos de futebol de Portugal e de muitos lugares do Mundo. O líder e o exemplo. Ganhou tudo, perdeu dinheiro, foi seguido pela PIDE, regressou a Moçambique onde assegurou o seu futuro e morreu. Faz agora um ano.

EM Janeiro, Eusébio; em Fevereiro, Coluna. Amargo ano esse de 2014. Foi preciso haver tristeza antes de chegarem as alegrias.
No espaço de um mês gastaram-se páginas e páginas sobre a morte das duas pérolas negras de Moçambique. Não só em Portugal: um pouco por todo o mundo.
Coluna morreu tão pouco depois de Eusébio que quase não houve tempo para sentir devidamente a sua morte. Assim a modos como a primeira morte encobrisse a segunda. E, no entanto, talvez Eusébio sem Coluna. Seu irmão mais velho, seu mestre, seu capitão. «O senhor Coluna».
«Though he was not a tall man, the muscular Coluna exuded an aura of effortless command, combining formidable physical authority with an elegant style and delightfully subtle skills wich seemed somehow unexpected in one so powerful», escreveu Ivan Ponting no «The Independent». Não leva tradução. É tão bonito na língua em que foi escrito, tão próximo daquilo que foi o futebol de Mário Esteves Coluna.
Nunca conheci alguém que falasse tão devagar. Tudo nele era solene e lento.
No campo também foi solene. Primeiro na frente, jogando mais perto das árias adversárias, depois recuando no campo para equilibrar a equipa, para dar dos companheiros o sentido do ritmo e das distâncias que sempre teve.
A imagem de Berna, com José Águas agarrado à Taça dos Campeões, é de uma elegância extrema. Águas tem pose: não é sôfrego nem excitado. A forma como pega na taça é de quem tem classe e sabe que a tem.
Mário Coluna estava à espera do seu momento. A taça fugiu-lhe: aquela taça. Ergueria outras, já «capitão», o «capitão dos capitães», o «capitão» eterno da camisola vermelha da cor do sangue.
No dia 2 de Maio de 1962, em Amesterdão, o Benfica conquista a sua segunda Taça dos Campeões vencendo o Real Madrid por 5-3.
Coluna soberbo. É formidável. Não sou eu que o digo. São os holandeses. Vejam!
Jan van der Gijp, redator do «Der Volkskrant»: «No final do grande triunfo, Eusébio da Silva Ferreira foi levado em ombros pelos seus entusiasmados adeptos, embriagados pelo fantástico jogo do negro de Moçambique. O 'tornado vermelho' desencadeou-se no segundo tempo, com as manobras do trio Coluna-Águas-Eusébio e o portentoso golo do primeiro que deu o segundo empate aos lisboetas. Então, Santamaria gritou: 'Madre de Dios!' E com esta expressão acabou a resistência do Madrid».
Martien Verveij, redactor do «De Telegraaf»: «A vitória do Benfica foi obtida através de uma clara demonstração de superioridade sobre o Real Madrid, o mais famoso clube do Mundo. O nítido resultado de 5-3 é uma evidência de capacidade técnica e táctica dos portugueses. Não só na velocidade, mas também na colocação, na decisão e força dos remates, os jogadores do Benfica provaram até ao último minuto que eram os melhores. O 'maior' foi Coluna. Logo seguido de Eusébio».
Quando se escreve Eusébio, escreve-se muitas vezes sobre Eusébio, só ele, mais ninguém.
Coluna é diferente. De cada vez que escreve sobre Coluna, escreve-se sobre todos os outros, sobre a equipa que ele comandava de forma irrepetível, sobre os que foram chegando e partindo, sobre os que ficaram depois dele.
É essa a razão da sua ordem: o arquitecto e a obra.
Ouvi muitas histórias da boca de Coluna. Ele sentado, a voz segura na lentidão das frases: «Estávamos no Brasil, jogávamos contra o Santos, no Maracanã. O Pelé estava endiabrado nessa noite, a dar um trabalho tremendo à nossa defesa. Há um companheiro nosso, já não me lembro quem, que lhe faz uma falta dura, deve tê-lo magoado de verdade, ele queixou-se primeiro e, logo em seguida, levantou-se furioso, a esbracejar e a reclamar com esse colega. Eu, que até estava longe, fui meter-me no barulho. Cheguei-me ao pé do Pelé e disse-lhe: 'Ouve lá rapaz, vê se tens calma se não sou obrigado a dar-te um murro. E toma atenção porque eu joguei boxe! Cuidado!' Ele ficou um bocado atrapalhado, lá se acalmou, esteve caladinho o resto do jogo todo e eu, que nunca joguei boxe na vida, fiquei a rir-me por dentro».
Eram assim as suas histórias.
De cada vez que me lembro de Mário Coluna, recordo-me do poema que João Cabral de Melo Neto dedicou a Ademir da Guia:
«Ritmo morno, de andar na areia
de água doente de alagados
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário...
O ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro
impondo-lhe o que ele deseja
mandando nele, apodrecendo-o».
E Coluna atava o mais irrequieto dos adversários.
Pelé era uma das suas vítimas. Dizia Eusébio que faziam faíscas dento do campo, Coluna sempre irritado com o brasileiro por este se fazer vítima das cargas dos adversários, instando-o a jogar e a deixar-se de fitas.
Em 1966, no Goodison Park de Liverpool, dia 19 de Julho, Pelé sofreu a sério.
Portugal ganhava por 2-0 ao Brasil que se via na contingência de ter de marcar cinco golos e não encaixar nenhum. Coluna recua para junto dos seus centrais e funciona como uma espécie de libero - já aí trazia consigo uma aura de modernidade. Pelé, desacompanhado, procurava fazer por si e pelos companheiros sem talento. Mas era um homem solitário e diminuído pela lesão que o impedira de jogar frente à Hungria. Caído sobre a esquerda do seu ataque, insistia nos lances individuais. Foi num desses movimentos que Morais tem uma carga rude sobre o «Rei» que o deixa praticamente fora do combate- Muito se escreveria, mais tarde, sobre a forma como Morais «liquidou» Pelé. Talvez ainda hoje o lance, indiscutivelmente faltoso e grosseiro, se discuta. O defesa direito do Sporting que já havia sido extremo esquerdo, deu assim a sua versão dos acontecimentos: «O lance foi absolutamente acidental. Eu nem sabia se a lesão do Pelé era na perna direita ou na esquerda! Calhou. Eu pretendia desarmá-lo e nem sequer lhe toquei no joelho. Depois, o Pelé levou o tempo todo em ameaças constantes: 'Olhe que eu parto uma perna a você!...' E eu, com um olho na bola e outro nele, respondia-lhe: 'Vai mas é fazer as malas!' O Coluna é que, com aquela calma dele, ia avisando: 'Olha que o Morais é perigoso! Tens maus fígados!'».
O «capitão» sempre no seu posto.
No Benfica na selecção. «Nessa altura os treinadores não podiam estar à beira do relvado a dar ordens, os árbitros não deixavam. Por isso, os 'capitães' eram uma espécie de treinadores dentro do campo. Foi o que eu fui?», contava Coluna. Devagar, em voz baixa: «Em 66, naquele lance entre o Morais e o Pelé, alguns dos nossos companheiros de equipa rodearam o Morais e foram-lhe dizendo - 'é pá!, vê lá se tens mais cuidado', e coisas do género. Eu então puxei-o para o lado e disse-lhe: 'Atenção! Aqui dentro do campo quem manda sou eu! Continua a jogar como estavas, durinho, que o Pelé, lá por ser o Pelé, não tem tratamento especial'».
Uma ideia que contrariava a de outra figura do futebol português dos anos 60, Fernando Riera que dizia: «Marcar Pelé homem a homem era um crime lesa-futebol». E o Coluna: «Ele dizia isso, pois dizia E por causa do Riera, nós, que tínhamos feito um bom resultado no Brasil, para a Taça Intercontinental, perdendo por 3-2, levámos uma goleada em Lisboa, com o Pelé, que era um jogador impressionante, a fazer o que queria da nossa defesa».

Influente nos companheiros, nos adversários e nos árbitros...
o disse e repito: faltou a Coluna um poeta que o escrevesse. Coluna: dificilmente um nome lhe ficaria mais a propósito. Firme, inquebrável, sério.
A sua figura encheu os campos de futebol de Portugal e de muitos lugares do Mundo. O líder e o exemplo. Ganhou tudo, perdeu dinheiro, foi seguido pela PIDE, regressou a Moçambique onde assegurou o seu futuro e morreu. Faz agora um ano.
Chegou a Lisboa, em 1954, aos dezanove anos, e viu e venceu.
Deixemo-lo falar: «Não gosto de dizer isso, pode parecer imodéstia, mas foi o que aconteceu, no fundo. O Benfica já não era campeão há três ou quatro anos, e logo na primeira época em que joguei fomos campeões, ganhámos a Taça, fui 'internacional' A, B e militar. As minhas memórias são boas desde início, o futebol foi um mundo feliz para mim».
Mário Coluna não foi campeão do Mundo. Mas só esse título terá faltado a uma carreira brilhante: «Fui campeão europeu com o Benfica, por duas vezes, a primeira naquele célebre jogo de Berna em que ganhámos ao Barcelona por 3-2, marquei o golo decisivo, o terceiro, ainda por cima nem pontapé de longe, bonito, surpreendente». A final da sorte, chamaram-lhe alguns, recordando-se da bola que viajou sobre a linha de baliza de Costa Pereira, a bater primeiro num poste e depois no outro, para sair calmamente fazendo negaças aos jogadores espanhóis e abrindo sorrisos na cara dos portugueses. «Sorte? Porquê sorte? O poste estava lá e, que eu saiba, no poste não é golo. Ninguém ganha a sorte grande sem comprar a cautela, pois não? Por que não falam de sorte no jogo contra o Real Madrid? Também estivemos a perder por 2-0. Por que não falam de sorte no Portugal-Coreia de 1966? Estivemos a perder por 3-0. Éramos melhores, ganhámos. Não foi questão de sorte».
Firme, Coluna. Desafio as recordações. As minhas recordações de Coluna a desfiar as suas recordações. A sua figura física: não precisava de ser enorme para impôr uma presença que não se esquece, por mais que os anos passem. Depois, já velho, falava com a sabedoria que sempre teve, sem amargura, apenas serenidade.
Há episódios que o fazem sorrir. Sobretudo os das rivalidades, os que implicavam com a personalidade dos outros em contraste com a sua própria personalidade.
«Uma vez, em Alvalade, num jogo contra o Sporting, o Germano faz uma rotura logo no início do jogo. Nesse tempo não havia substituições e ele foi fazendo de conta que não se passava nada para não dar vantagem ao adversário. Ora, o Sporting tinha um avançado, o Figueiredo, que corria muito e era muito forte fisicamente, embora jogasse sempre de cabeça baixa e de olhos na bola. De repente, o Figueiredo surge embalado na minha direcção. Pensei: 'Se ele passa por mim, coitado do Germano!' E fui duro. Só ele que ele encaixou a cabeça debaixo do meu braço e eu, aproveitei, e apertei-lhe o pescoço. Com a velocidade a que ele vinha, deitei-o ao chão de tal  forma que ele rebolou pela pista de atletismo. O árbitro não me expulsou, advertiu-me só para ter mais cuidado, mas os sócios do Sporting não me perdoaram. No final tive de sair sob escolta da polícia, enfiado numa carrinha. Se não...»
Dizia-se que o árbitro tinham medo dele. Recordo-me de uma imagem sua: de braços atrás das costas, cabeças ligeiramente curvada, falando respeitosamente para um juiz. Comentava-se que, a despeito da postura respeitadora, Mário Coluna dizia das boas aos árbitros.
Manuel da Luz Afonso, dirigente do Benfica, seleccionador nacional, disse-me uma vez, ali na sua casa de Campolide: «Coluna era um gigante, verdadeiramente meia-equipa com toda a sua influência nos companheiros, nos adversários, nos árbitros e no público. Foi o único jogador que nunca tive de multar». Coluna ria-se: «Nunca levei uma multa, é bem verdade! Porque eu achava que devia ser um exemplo para os outros. Era, afinal o responsável pela equipa dentro do campo. E falava com os árbitros nessa condição. Falava-lhes com respeito mas dizia-lhes o que pensava dos lances e, se necessário, discordava deles».
O final da carreira de Coluna não foi no Benfica, foi no Lyon. Mas teve outras oportunidades para sair no tempo maior da sua glória: «Investi tudo o que ganhei em Moçambique. Não ganhei muito, podia ter ganho muito mais se o Benfica me tivesse deixado sair para o Roma, no mesmo ano em que Eusébio teve um convite para o Inter, mas os tempos eram outros». Outros tempos, outra política, Mário Coluna é seguido pela PIDE, desconfiam das suas simpatias pelos movimentos pró-independentistas. «Essa história da PIDE tem que ver com uma viagem a Praga com a selecção. Apareceram-nos no hotel alguns estudantes angolanos, pediram-nos convites para o jogo, nós oferecemos os nossos, nada de mais. Mas, depois, chegados a Lisboa, recebi uma convocatória para ir à PIDE. Fui. O inspector que me atendeu era do Benfica e um admirador meu. Expliquei-lhe o que se passara e ele disse-me: 'Você teve uma grande sorte por estar eu aqui. Com outro colega qualquer já estaria preso'. Parece que havia gente da PIDE infiltrada entre os estudantes e que alguns deles eram dos movimentos pró-independência. Nunca mais me aborreceram depois disso, mas estou convencido do que ficaram de olho em mim».
Lourenço Marques: 1935, dia 6 de Agosto. Foi nesse dia mágico que nasceu Mário Esteves Coluna, o homem capaz de percorrer sem descanso a latitude e a longitude do meio-campo.
Era um terça-feira.
O dia 25 de Fevereiro de 2014 foi igualmente uma terça-feira.
A vida, às vezes, é uma volta redonda. Completa.

8 de Dezembro de 1970
Foi no Estádio da Luz o jogo de homenagem a Coluna
O jogo de homenagem a Mário Coluna teve lugar no Estádio da Luz no dia 8 de Dezembro de 1970. Estiveram presentes 46 mil pessoas e o Benfica defrontou uma selecção do resto da Europa. Resultado final: 3-2. 1-0, por Eusébio; 2-0, por Simões; 2-1, por Seeler; 2-2, por Garate; 3-2, por Artur Jorge.

Benfica: J. Henrique; Toni, Zeca, Humberto, Adolfo; Coluna (Matine), V. Martins (Nené), J. Graça; Simões, Eusébio; Artur Jorge.
Resto da Europa: Iribar (Bento); Bobby Moore, Pirri, Gallego, Gemmell; Seeler, Gruyff (Anderssen); Hurst, Dzajic (Rodilla); Muller, Osgood."

Afonso de Melo, in O Benfica

Corrida a dois

"Este fim de semana confirmou-se o que era uma inevitabilidade desde o início da temporada: o campeonato é uma corrida a dois. Benfica e Porto são superiores a todas as outras equipas a vários níveis - qualidade individual, organização colectiva e intensidade competitiva. Podem ter dificuldades numa ou noutra partida, mas há uma distância significativa entre os dois primeiros classificados e restantes equipas.
O que nos deixa uma certeza: teremos um campeonato disputado e que se decidirá em torno de quatro dimensões - arbitragens; liderança em campo; forma física; e desgaste da Champions.
Muito se tem falado de um Benfica 'levado ao colinho'. É uma evidência que semana sim, semana sim, o campeonato é brindado com arbitragens medíocres, mas, quando se fizer a contabilidade final, veremos que no 'deve a haver' dos beneficiados teremos um quadro de equilíbrio. O que mudou é que o Porto deixou de beneficiar dos campos inclinados a que se habituou. A forma como as próprias arbitragens vão ser capazes de ficar imunes à pressão do discurso do 'colinho' fará diferença.
Durante muito tempo, uma das vantagens do Porto face ao Benfica foi ter uma voz de comando em campo, capaz de funcionar como treinador durante os jogos. Desde a saída de Lucho, o Porto não mais teve um líder dentro do relvado. O Benfica tem Luisão.
Ao contrário do que se quer fazer crer, não há grandes diferenças entre os 11 titulares. Onde o quadro é menos equilibrado é quando falamos de segunda linhas. O Porto leva vantagem na qualidade individual do seu banco. As lesões e a forma física serão, por isso, decisivas. A este propósito, é uma incógnita o impacto da Champions no Porto. O desgaste pode fragilizar a equipa, mas bons resultados podem ser um suplemento de alma adicional.
No fim, a melhor equipa será campeã, pelo que de pouco serve andar, desde já, a ensaiar choradinhos."