terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

É assim que o Destino bate à porta

"Augusto Silva foi um homem amargamente marcado pela vida e pela morte. Chegou ao grande Benfica de 1962 com a pompa de ter custado, no total, mais de mil contos e teve de esperar, volta e meia a sua vez. Manteve-se no seu posto até ao dia maldito de Santiago do Chile.

Janeiro, mês de Eusébio já lá vai, deixêmo-lo por momentos em descanso, embora tenhamos de falar nele ainda nesta página, aí um pouco mais à frente.
Hoje quero recordar Augusto Silva.
Atenção! Não confundir Augusto Silva com Augusto Silva. Isto é, não confundir a velha lenda do Belenenses, um dos heróis da célebre saga de Amesterdão nos Jogos Olímpicos em 1928 (cá agrafo um papelinho para sobre a matéria noutro ocasião), e que como treinador fez do Belém campeão nacional em 1946, com Augusto Lamela da Silva, nascido em Barcelos em 1939.
É a este último que me refiro.
Chegou ao Benfica na época de 1962/63 e pela Luz ficaria até 1966/67, marcado por um triste final da carreira aos 27 anos de idade, em Santiago do Chile, no decorrer de uma das famosas digressões do Benfica, atacado por uma trombose que o incapacitou para a vida.
A tristeza, aliás, marcou-o desde miúdo. Aos dez anos muda-se de Barcelos para Guimarães para se tornar aprendiz de serralheiro. Sonha ser jogador e treina nos escalões jovens do Vitória. Duas operações precoces ao menisco, põem em risco as suas ambições, mas persevera, não se deixa abater - estreia-se na I Divisão contra o Benfica, no Estádio da Luz, em 1958: perde por 0-7. Apesar de tudo, o V. Guimarães terminaria esse campeonato no 5.º lugar.
O Benfica é um Clube em crescimento contínuo. Não tardará a dominar a Europa. No continente ou nas colónias, não perde a oportunidade de contratar os melhores. Augusto Silva, um polivalente que tanto jogava a médio como extremo e até a defesa - nesse jogo dos 0-7 coube-lhe marcar Mendes - é um dos melhores. Em 1962, numa exibição brilhante frente ao Benfica (2-2 em Guimarães) escancara-lhe as portas da Luz. Apesar do assédio do FC Porto, assina contrato recebendo como prémio 400 contos, um dinheirão para a época. O Vitória é ressarcido com 700 contos, e ainda garante jogadores 'encarnados': Manuel Pinto, Teodoro, Zeca Santos e Testas (os dois últimos por empréstimo).
Mas não há dinheiro que mitigue a tristeza de Augusto Silva: nesse ano morre-lhe a filha de apenas sete meses, vítima de poliomielite. No ano seguinte é a vez de outro filho, com a mesma idade e o mesmíssimo destino. Madrasta, a Grande Ceifeira obrigá-lo-ia a ver partir ainda mais um filho, muitos anos depois.

Uma tarde de chuva em Roterdão...
Não era fácil entrar nessa equipa do Benfica de então. Não era nada fácil!
Augusto Silva rendia mais na frente de ataque, como ponta. Mas, quem sairia para ele entrar? Simões? José Augusto? Nunca! Eram intocáveis.
Guardando dentro a sua tristeza, esperou com paciência, foi fazendo o seu trabalho na equipa de reservas, viu-se aqui e ali lançado no «team» principal. A sua melhor época foi a de 1965/66, com 17 utilizações. Na da sua estreia, somou apenas cinco jogos: marcou dois golos. O seu primeiro pelo Benfica foi ao Barreiro, frente ao Luso, no dia 23 de Setembro de 1962: vitória 7-0.
Mas quero falar de outro jogo. Também na sua época inicial de 'encarnado'. Disputado no dia 8 de Abril de 1963. Em Roterdão: meia-final da Taça dos Campeões Europeus, 1.ª mão - adversário Feyenoord.
Augusto Silva entra em campo como titular! Simões não está. Ei-lo que surge nos palcos do grande Futebol. O Benfica acabara de deixar para trás, nos quartos-de-final, o duríssimo Dukla de Praga do enorme Masopust. Agora é o campeão holandês que se intromete no caminho da sua terceira final consecutiva.
Está frio em Roterdão. Estão sobre o terreno pesado: Costa Pereira; Cavém e Cruz; Humberto, Raul e Coluna; José Augusto, Santana, Águas, Eusébio e Augusto Silva. O adversário é fisicamente poderoso. Está longe de possuir a técnica e a categoria dos portugueses, mas homens como Kraay e Klaasens, Moulijn ou Van der Gip, podem a qualquer momento criar embaraços sérios.
Fernando Riera dera ao Benfica que herdara de Guttmann um cunho mais pragmático. Não corre riscos desnecessários. Joga com o tempo e com os resultados. Em Praga, depois de uma vitória na Luz por 2-1, mantivera um gélido 0-0 a despeito do assalto checoslovaco. Agora sabe que tem a 2.ª mão na Luz para resolver a contenda, e a Luz é um Estádio aterrorizador para quem o visita.
Eusébio é marcado de forma severa. José Augusto e Santana sentem dificuldades com a chuva miúda e o relvado torturado. Augusto Silva sente-se livre. Arrisca. Será o jogador mais rematador do Benfica nesse encontro, mais ainda do que o irrepetível Eusébio. Apesar da sobriedade imposta pelo treinador chileno, solta-se para movimentos surpreendentes, para momentos excitantes que agitam de medo a defesa holandesa e mantêem o guarda-redes Graafland em sentido. É um momento bonito da sua vida e talvez tenha conseguido esquecer por momentos a tristeza que o consumia e dedicar-se à paixão absoluta do jogo.
O plano traçado por Riera dá resultado: o Benfica sai de Roterdão com 0-0. Na Luz, Simões está de regresso. Vitória por 3-1 (Eusébio, José Augusto e Santana) e final marcada para Wembley, frente ao Milan.
Mas Augusto Silva está lá, no seu posto, aguardando que o chamem para novo combate. Dirá sempre presente até ao dia maldito de Santiago do Chile quando a pena de um dos grandes escreveu: «Acordar morto para o Futebol»...
Como dizia Beethoben sobre os imponentes acordes da sua Quinta Sinfonia: «É assim que o Destino bate à porta!?"

Afonso de Melo, in O Benfica