terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A hora de Gaitán

"O futebol é fantástico. De onde quer que o observemos, revela-nos sempre um ângulo interessante. O futebol baseado numa vertigem atacante fascina, mas podemos bem desfrutar com igual entusiasmo do ataque organizado em toada lenta - da mesma forma que não devemos menosprezar uma organização defensiva monotonamente compacta. Quem só aprecia um estilo de futebol e se convence que a virtude está, apenas, em ataque estonteantes, ainda não entrou na maturidade da relação com o desporto-rei.
Todas as vitórias têm um encanto particular. Sim, deixei-me levar pelo título ganho pelo carrossel alucinante montado por Jesus no primeiro ano; mas guardo igual memória de campeonatos conquistados por equipas burocráticas que exibiam um modo administrativo de jogar: uma tarefa para cumprir (vencer jogos), alcançada com o máximo de eficiência. Foi assim em 86/87, aquando da segunda passagem de Mortimore; em 04/05 com Trappatoni e, sejamos, realistas, é este o caminho possível para o título este ano.
Bem sei que as vitórias trazem confiança e uma margem pontual confortável é o tónico perfeito para boas exibições. Tudo isso é verdade, mas o Benfica de 14/15, em reconstrução permanente, só será ganhador se for uma equipa em modo administrativo.
Há, contudo, mais paralelismos entre esta temporada e as de 86/87 e 04/05. Agora como então, a organização burocrática da equipa exigiu de um só jogador um esforço adicional. Diamantino e Simão tiveram de ser jogadores desequilibradores, capazes de dar o suplemento de criatividade que as equipas não tinham. Hoje, o Benfica dependerá de Gaitán para a mesma função. O que exige mais do argentino. Não lhe bastará ser o extremo talentoso que conhecemos. Nesta segunda metade do campeonato, Gaitán terá de ter maior versatilidade táctica e a responsabilidade acrescida de ligar sectores. Com a saída de Enzo e com um plantel menos forte é a hora de Gaitán."

Golos, golos, golos e mais golos!

"1973 foi um ano importante para Eusébio. Ganhou a sua segunda «Bota de Ouro», foi figura de uma vitória arrasadora do Benfica no Campeonato Nacional, despediu-se da Selecção Nacional...

Atrasemos o calendário. Vamos até 1973, falando de Eusébio, claro está, prometi aos meus pacientes e benignos leitores que aproveitaria estes dias que fazem correr a cortina negra de um ano sobre a sua morte para escrever em sua homenagem.
É isso que faço. Trago-vos história, factos, números.
Trago-vos Eusébio da Silva Ferreira correndo com o braço no ar pela verde planície da eterna saudade.
1973 foi um ano marcante na carreira de Eusébio. Profundamente marcante!
Marcou 40 golos no Campeonato Nacional.
O Benfica foi Campeão com apenas dois pontos perdidos: 28 vitórias e 2 empates; 101 golos marcados e 13 sofridos. Só num jogo não marcou golos: na Tapadinha, com o Atlético, na penúltima jornada (0-0). Nenhuma outra equipa faria melhor.
Na Luz, foi infernal:
Leixões: 6-0 (3 golos de Eusébio)
Beira-Mar: 9-0 (3 golos de Eusébio)
Sporting: 4-1 (4 golos de Eusébio)
Belenenses: 5-0 (3 golos de Eusébio)
FC Porto: 3-2 (Eusébio não jogou)
Farense: 3-0 (Eusébio não jogou)
Atlético: 2-0 (1 golos de Eusébio)
Boavista: 4-1 (1 golos de Eusébio)
U. Coimbra: 6-1 (2 golos de Eusébio)
Barreirense: 3-0
V. Setúbal: 3-0 (1 golos de Eusébio)
U. Tomar: 2.1 (2 golos de Eusébio)
V. Guimarães: 8-0 (3 golos de Eusébio)
CUF: 2-0 (2 golos de Eusébio)
Montijo: 6-0 (4 golos de Eusébio)
A linha avançada do Benfica era, provavelmente, a melhor desde o tempo das vitórias na Taça dos Campeões: Nené, Eusébio, Vítor Baptista, Artur Jorge, Jordão e Simões. Ufa! Mas alguém podia pôr em causa tanta qualidade?

A despedida da Selecção Nacional
Em 1973, Eusébio marcou o seu último golo pela Selecção Nacional. E Coventry, em Inglaterra, por causa dos conflitos que se viviam em Belfast, na fase de apuramento para o Campeonato do Mundo de 1974, na República Federal da Alemanha, frente à Irlanda do Norte.Resultado: 1-1. Eusébio converteu um «penalty», aos 84 minutos. O guarda-redes era Pat Jennings, do Tottenham.
Em 1973, Eusébio fez o seu último jogo pela Selecção Nacional. No Estádio da Luz, frente à Bulgária (2-2). Lesionado, foi substituído por Jordão, aos 28 minutos. Eliminado do Campeonato do Mundo, Portugal trocaria de seleccionador: saiu José Augusto e entrou José Maria Pedroto. A selecção portuguesa bateu no fundo: Pedroto inventou a renovação e ficou para a história como o seleccionador que só ganhava ao Chipre.
José Maria Pedroto já morreu e, em Portugal, é crime apontar defeitos aos mortos. Não tem mal. Levem-me preso: nunca houve tão medíocre treinador nos registos da Selecção Nacional. Um completo desastre! Como seria de esperar de alguém que sempre devotou à Selecção um ódio miudinho que, por osmose, se transferiu para determinada classe dirigente do FC Porto. Se a grandeza humana não tem limites, a pequenez também não.
Em 1972/73, a época na qual Pedroto decidiu que Eusébio já não servia para a Selecção Nacional, Eusébio marcou 76 golos. Sete-seis: 76. Por extenso: setenta e seis!
3 na Taça de Honra: Belenenses 1; Atlético 2.
40 no Campeonato: Leixões 4; Beira-Mar 3; U. Coimbra 3; Sporting 4; Belenenses 4; U. Tomar 3; CUF 3; Atlético 1; Montijo 5; V. Setúbal 1; FC Porto 1; Farense 2; V. Guimarães 3.
2 na Taça dos Campeões: Malmo 2.
3 na Selecção Nacional: França 2; Irlanda do Norte 1.
28 em jogos particulares: Selecção da Indonésia 4; Benfica Luanda 1; Sporting Luanda 2; Selecção Frankfurt 1; Selecção Hong-Kong 3; Selecção Chinesa 2; Misto Macau 2; Marítimo 1; Seiko 2; Caroline 1; Anderlecht 2; Nottingham Forest 1; Boavista 1; Málaga 2; Estrela Vermelha 3.
Eusébio tinha 31 anos. E marcava golos como nunca. Só por uma das sessanta e quatro vezes que jogou com a camisola dos cinco escudos azuis de Portugal, Eusébio esteve em Paris. Mas, nessa noite de Março de 1973, Eusébio ofereceu a Paris todo o seu esplendor: o esplendor de Portugal!
Imaginem a fotografia nítida perfeita. De costas, na sua passada larga, imponente, Eusébio fura pelo meio de dois adversários, o 2 e o 4; Eusébio tem a braçadeira de «capitão» na manga esquerda, e o 10 nas costas; dir-se-ia em 2014 em movimento tripartido. Data: 4 de Março de 1973. Local: Parque dos Príncipes, em Paris.
Estava anunciada guarda negra para Eusébio. Negra ou branca, a verdade é que o 'capitão' português foi estreitamente vigiado durante todo o encontro, como nesta fase em que aparece entre Broissart e Adams.
Guarda negra: os franceses tinham avisado que, contra Eusébio, utilizaram dois centrais altos, fortes e negros - Adams e Marius Trésor. A defesa direito, outro homem das colónias: Broissart.
Eusébio nem ligou aos avisos. Também não ligou ao facto de a França se ter adiantado no marcador, aos 36 minutos, por Molitor. Dois minutos depois, empata, num «penalty» a castigar falta de Trésor sobre Abel. No último minuto do jogo, como que para assinar o «grand finale» ao seu estilo único, um centro de Pavão, na esquerda, apanha de surpresa todos os habitantes da grande-área francesa menos... Eusébio: um mergulho, um desvio de cabeça, um golo bonito, suave, irretocável.
Cornus, o guarda-redes francês, conforma-se: «Aquele golo de Eusébio deixou-me siderado! Na posição em que ele se encontrava esperei que ele fizesse o remate com o pé e nunca com a cabeça. É claro que, quando ele meteu a cabeça, fiquei logo batido. Não tive qualquer hipótese! Não foi golo - foi um golão!»
Nada em Eusébio nos espanta..."

Afonso de Melo, in O Benfica