quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Não vi mas também não gostei

"Será que a Selecção tem cozinheiro? Tem? Então a culpa é do cozinheiro. No Benfica também temos cozinheiro: o Talisca já engordou cinco quilos.

NÃO fizemos um mau jogo disse Paulo Bento.
Lamento, e lamento muito sinceramente, mas não usufruo do grau mínimo de legitimidade para desancar com os meus argumentos impiedosos a supracitada análise do nosso seleccionador nacional devido a uma razão nada complicada. É que não vi o jogo.
Não ver é um direito que a todos assiste e que não menoriza ou, pelo menos não deveria menorizar, os que dele (do direito) não prescindem em certas e bem determinadas ocasiões. Como esta, justamente.
Portugal contra a Albânia não era grande programa, admita-se sem complexos. O cartaz só não era fraquíssimo para quem não anda nestas coisas. E ainda são algumas privilegiados.
Mas para os outros, os que andam forçosamente nestas coisas mas com consciência plena dos factos, e ainda são muitos, fazia arrepiar só a ideia de que o cair da noite do primeiro domingo do sempre admirável mês de Setembro pudesse vir a ser importunado por um acontecimento tão insuficientemente exótico como um Portugal - Albânia.
E se fosse ao contrário? Se em vez de um Portugal - Albânia marcado para Aveiro, antes fosse um Albânia - Portugal agendado para Tirana?
Com o devido respeito pelas duas federações em contenda, ia das ao mesmo.
Mas, sendo o jogo no estrangeiro e sabendo-se que as excursões para fora do país provocam sempre formigueiros em qualquer tipo de comitivas, não se poderia antecipar um Albânia - Portugal prometedoramente mais atractivo do ponto de vista da qualidade das emoções? Não, de modo algum. Sò os ingénuos acreditam numa coisa destas.
Cá ou lá, a coisa tinha todos os ingredientes para estar condenada à partida.
Começou mal a campanha de qualificação da Selecção portuguesa de futebol para a fase final do Europeu de 2016, evento para o qual ainda falta imenso tempo? Sim!
Começou pessimamente. Mas pior teria começado para mim, egoistamente falando, se tivesse de ver esse mesmo jogo de que me escapei, muito decididamente, atravessando a fronteira para a Espanha sem pinga de remorso.
Remorsos? Nada, nem um bocadinho. Mas onde é que as exóticas festas da Senhora das Angústias de Ayamonte ficam alguma vez atrás, no domínio das mais básicas expectativas, de um Portugal-Albânia ou de um Albânia-Portugal, seja em que modalidade for?
Devo dizer, em abono da verdade, que estava o jogo precisamente no seu intervalo e ainda estava eu em terras portuguesas. Mais precisamente numa estação de serviço à beira da estrada. Foi aí que ouvi em fundo, e sem querer, o som vindo do minúsculo aparelho de televisão que para lá está a um canto a fazer companhia ao gasolineiro nas horas mortas, que devem ser incontáveis daqui até ao próximo verão.
A televisãozinha estava sintonizada na RTP que transmitiu o jogo como é deu dever. Conto-vos então o que ouvi no momento em que liquidava a despesa sob um cheiro intenso e inebriante a gasolina.
«Chegamos ao intervalo e em termos de ocasiões, uma para Portugal, zero para a Albânia».
Foi este (e num tom enfadado) o modo como o comentador de serviço resumiu os primeiros quarenta e cinco minutos do tal desafio internacional.
E pensei com grande tranquilidade: «Deve estar a ser bonito, deve».
O homem ou adivinhou os meus pensamentos ou terá reparado num franzir de sobrolho que me escapou e logo se dispõe a dar-me razão sem eu lhe pedir:
- Não está a perder nada de especial, não senhora.
E disse-o com bonomia que é o que ser quer. Segui viagem.
Meia hora depois, sentada à mesa com um grupo de bons amigos na esplanada da Puerta Ancha na já mencionada cidade de Ayamonte, perante a excelência de tudo o que se me deparava, afligiu-me um rebate de consciência muito característico de quem na infância frequentou a catequese.
Foi maior a preocupação do que o arrependimento, convenhamos. Mas a perspectiva de uma derrota da Selecção portuguesa frente à selecção albanesa, resultado indiscriminadamente exótico, obrigava-me por isso mesmo, e por razões morais, a ter visto o jogo sobre o qual toda a gente, dos amadores aos profissionais, iria falar durante a semana.
E eu, no fundo, considerei-me e considero-me uma profissional, anda que sem nada para dizer sobre o assunto albanês.
Vi o jogo? Honestamente, não, não vi.
Não vi mas também não gostei.
Pronto. É o mais longe que me posso permitir em termos do comentário profissional, do tipo intelectualmente honesto predominante.
E, sem ter visto o jogo, o que escrever?
Poderia, nas circunstâncias difíceis em que me encontrava, optar por uma de duas soluções para uma saída airosa tendo em vista a crónica desta quinta-feira.
A primeira era desancar à tripa forra no seleccionador nacional. Para dizer mal do Paulo Bento e deixar toda a gente satisfeita nem é preciso ver jogos da Selecção que ninguém dá conta. Mas não será fácil de mais, quase ignóbil, desancar no seleccionador goleado por 1-0 pela Albânia num jogo que nem vi?
A propósito desta questão moral lembrei-me de uma frase que nunca me saiu da cabeça lida num romance de Conrad - «... aquela cobardia peculiar da respeitabilidade» - e logo se me afastou essa ideia tristíssima de me fazer consensual às custas de um pobre diabo caído em desgraça.
A primeira solução ficou, portanto, imediatamente arrumada.
A segunda solução era cumprir a crónica desta quinta-feira sem considerações sobre o jogo da Selecção ou sobre qualquer outro jogo ou evento desportivo, ou mesmo escândalo judicial, considerando eu, do meu imbatível lugar sentado numa esplanada espanhola, que não havia nada de mais contundente, espirituoso e urgente para os leitores de A BOLA do que conhecer o menu proposto pela casa juntando-lhe eu a minha muito pessoal descrição sábia e vaporosa de uns quantos pratos que me mataram a fome.
É isso, é isso queremos! - gritam os leitores que, francamente, já preferem não importa que assunto a ter de ler mais uma página de alto a baixo a descansar no Paulo Bento.
Ganhou, portanto, a segunda solução. Cá vai. Da exibição do nosso renovado meio campo nada sei nem quero saber. Mas naquela hora de domingo à noite em Ayamonte podia garantir-vos que o tataki du atún con wasabi y encurtido de jengibre ganhava de largo a qualquer prato confeccionado pelo cozinheiro da Selecção Nacional.
E agora interrogo-me: será que a Selecção tem cozinheiro? Tem? Ah, então a culpa, está visto, é do cozinheiro. Há que substitui-lo com urgência. La vida es demasiado corta para beber vino malo, reza o cardápio da Puerta Ancha na contracapa. E reza muito bem. Por alguma razão já foram campeões do mundo.

UMA vez sem exemplo a falar de comida, é verdade, mas não por falta de assunto, nem por temor reverencial, muito menos por gula, Deus me livre, antes por deliberada falta de comparência, tal como ficou justificado.
No entanto, o tema alimentar, devo confessar, persegui-me durante a semana e coloco-o mesmo no cume da minha montanha de atenções neste primeiro terço de Setembro. E pelas melhores e mais felizes razões.
Então não é que o nosso Talisca, dizem os jornais já engordou cinco quilos em massa muscular desde que aterrou no Estádio da Luz? No Benfica, ao menos, temos cozinheiro."

Leonor Pinhão, in A Bola

Fellini 8 1/2

"Era um jovem quando nos anos 60 do século passado vi o filme de Fellini 8 1/2, por sinal bem difícil de descodificar. Veio o notável realizador italiano à minha memória, quando surgiu uma nova e sofisticada aritmética (tabuada) no futebol. As posições dos jogadores deixaram de ter nomes substantivos para se lhe aporem números significantes. Não me refiro à numeração nas camisolas, que essa deixou de ter qualquer sentido, excepto se ligada a alguma tradição ou até superstição.
Estou a falar de outros números que enquadram posições e movimentos. Ouve-se dizer que um certo jogador é um puro 8, mas pode adaptar-se a ser um bom 6 e, em caso de emergência, até um 3. Assim como são raros os bons 10 para  assistir os 9. Fala-se agora de Jonas para o Benfica, com uma interessante referência: não é bem um 9, nem um 10: é um 9,5. Confesso que não conheço as suas capacidades. Mas ser um número fraccionado é o mesmo que dizer que não é inteiro? Será 9 por excesso e 10 por defeito? Já agora, sendo o 1 o guarda-redes haverá alguns que só são 0,5?
Também ouço dizer, de vez em quando, que certo jogador é, por exemplo, um falso 6. Quer dizer que é um número imaginário?
Ainda a propósito dos novos algarismos, recordo a sagaz explicação de Jorge Jesus durante o jogo em Londres contra o Totteham. Ganhava o Benfica gloriosamente por 3-1 e dirigindo-se ao seu colega inglês fez o gesto com os dedos indicando 3 (golos, claro). Mas, na conferência de imprensa, mais cauteloso, explicou-se: «Estava a dizer Luisão, number 3» que, por acaso, veste a camisola n.º 4. Mas que para Jesus ocupa a posição 3. Ou seja, um número primo no SLB, evidentemente."

Bagão Félix, in A Bola