sábado, 21 de junho de 2014

"O que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui está preta"

"Portugal amordaçado. Com a jóia perdida na «joelharia», atropelado por uma maciça Cavalgada das Valquírias. A Selecção Nacional afundou-se na Baía.

SALVADOR - Pois, pois, pois. Eu quis até telefonar... Mas, o pior, é que, por mais redes que existam, as tarifas não têm graça nem são de graça. Por isso, como prometido, mando notícias de Salvador e vão por mail.
«Aqui na terra estão jogando futebol», cantava o Chico Buarque, esse mesmo Chico apanhado numa fotografia maravilhosa, no Estádio da Luz, nos anos 60, junto dos seus ídolos, Eusébio e Coluna, que há tão pouco tempo «se encantaram» como escrevia Guimarães Rosa recusando-se a tropeçar na palavra morte. Esse mesmo Eusébio a quem Roger Milla, o velho feiticeiro dos Camarões, se refere carinhosamente, numa entrevista concedida ao «L'Equipe» e que ainda ontem li. Esse mesmo «L'Equipe» que nos faz recordar o tempo do Grande Jornalismo (assim mesmo, com maiúsculas), trabalho que metia reportagem e crónica e notícias, coisa a que ainda devíamos ter direito no momento de gastar dinheiro nos nossos cada vez mais miseráveis jornaizinhos.
Palavra puxa palavra e ficaria aqui por horas encaixando-as umas nas outras enquanto a tardinha cai e o barquinho vai lá na Baía-de-Todos-os-Santos, junto à Igreja do Bonfim que tem um santo do outro Bonfim, o de Setúbal, e à Ponta do Humaitá que traz por sua vez à memória aquele Humaitá que coloriu cadernetas de cromos de algumas das nossas infâncias.
Não vou por aí. Fico na terra onde se joga futebol. Na esplanada do Mercado Modelo, à beira do Elevador Lacerda, toca-se pandeiro e bebem-se periguetes bunda de foca, que em português arcaico se poderia traduzir por «mulheres-da-vida-de-rabo-gelado» se a periguete agora na moda não se limitasse a ser uma cervejinha que se esgoela quase de golada.
Jorge Amado, que vivei por aqui a maior parte da sua vida, jurava que havia trezentas e sessenta e cinco igrejas em Salvador. Parece que não são tantas. A menos que se incluam a Igreja dos Santos Apocalípticos, a Igreja Universal de Meu Irmão Jesus Vivo, a Igreja dos Passos Perdidos Sem Retorno e outras tantas do mesmíssimo calibre cujos devotos tentam arregimentar simpatizantes distribuindo papelinhos com orações infalíveis contra o olho-grosso nas redondezas da Arena da Fonte Nova.

Perdidos na «joelharia»
E chegados a este ponto, abuso do Chico:
«Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui 'tá preta».
Mas preta! Preta como a negra gorda vestida de branco que se passeis majestosa no Largo Teresa Batista, ali ao Pelourinho, bairro tão português de uma Salvador baiana como nenhuma outra.
O termo «joelharia» poderia vir aqui a propósito porque se fala tanto do joelho do Ronaldo, esse joelho que vai ter não tarda muito a dimensão do joelho do Eusébio (lembram-se?), e porque vale tanto que deixa Portugal inteiro em cuidados com a sua jóia, menino fagueiro que assustava alemães ao ponto de os assobios de tornarem apitos de carnaval de cada vez que tocava na bola.
Portugal afundou-se na Baía.
«Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades», mas a verdade/verdadinha é que esse Portugalzinho amordaçado e perdido parecia uma equipa de meninos da Terra do Nunca sem Peter Pan à mercê de uma Alemanha sem grande samba, sem candomblé, mas com a energia milenar dos Nibelungos. Foi a Cavalgada das Valquírias! «Ninguém segura esse rojão». Se aqui na terra alguém esteve jogando futebol, esse alguém não foi português. Veio lá das margens do Reno até aos trópicos trazendo a maquinaria resistente feita de aço do Ruhr. E deixando caber entre Neuer, Muller, Lahm ou Podolski, um «príncipe etíope de rancho», como declamava Nelson Rodrigues, chamado Boateng. Que não Prince...
Valeu que no dia seguinte, terça.feira, houve missa cantada na Igreja de São Francisco. Garotos de uma perna só, como Saci Pererê, vendem centenas de fios, terços e berimbaus contra o mau-olhado. Foi mau de olhar, isso foi. Portugal-dos-passes-perdidos. passo perdido.
«Muita careta pra engolir a transacção
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho».
Quatro-a-zero. A derrota mais  dura bateu à porta de uma Equipa-de-Todos-Nós enredada em nós impossíveis de desatar.
E agora? Vou continuando a mandar notícias deste Inverno quente, daqui a pouco lá mais para o Amazonas e para Manaus, outro jogo, talvez um destino pura mudar.
«Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça».
Chegará? O tempo trará a resposta a tal pergunta. Para já não chega. Foi até de menos. Aqui na terra podem estar jogando futebol, mas essa não é a verdade lusitana. Quem jogou foram os outros."

Afonso de Melo, in O Benfica