terça-feira, 15 de abril de 2014

A noite em que as papoilas espezinharam as tulipas...

"É longa a história do Benfica contra equipas holandesas. Um dos momentos mais fantásticos foi vivido na Luz, no dia 22 de Março de 1972: 5-1 ao Feynoord que fora dois anos antes campeão da Europa.

Vem isto a propósito do Benfica-AZ Alkmaar. Ou do Benfica de novo frente a frente com equipas holandesas. Para já, peço desculpa, mas os maus hábitos pegam-se mais facilmente do que os bons - mais ou menos com as bexigas. E peço desculpa porque o AZ Alkmaar não deveria escrever-se. É, pode dizer-se , uma anáfora. Porque AZ significa Alkmaar Zaantreek, nome da cidade e da região onde ela se situa, pelo que o Alkmaar que vem a seguir ao AZ é dispensável. Mas siga a prosa.
O AZ não é um monstro do futebol holandês, longe disso, tem apenas dois campeonatos no bornal, mas já esteve presente numa final da antiga Taça UEFA (jogo em casa formidável frente ao Ipswich de Bobby Robson) e conta com mais uma meia-final.
Só que o que me leva a escrever não é propriamente o AZ, embora tenha sido esse o desbloqueador do texto. Quero falar do Feynoord e, para isso, recuo aos anos 70. Precisamente 1970: o clube de Roterdão ganha pela primeira vez (e até agora única) a Taça dos Campeões Europeus.
O treinador é o austríaco Hernst Happel, um papa-títulos-e-honrarias impressionante: campeão da Europa com Feynoord e Hamburgo, finalista da Taça dos Campeões e da Taça UEFA com o FC Brugge, finalista da Taça UEFA com o Hamburgo, finalista do Campeonato do Mundo com a Holanda. As estrelas são Israel, Jensen e Van Hanegen.
O Feynoord elimina sucessivamente o KR Reykavik, da Islândia (12-2 e 4-0), o AC Milan, da Itália (0-1 e 2-0), o ASK Vorwaerts, da RDA (0-1 e 2-0) e o Légia Varsóvia, da Polónia (0-0 e 2-0). Na final, em San Siro, bate o Celtic por 2-1 após prolongamento. O Celtic que ultrapassara o Benfica pelo maldito sistema de moeda ao ar.
Faltavam dois anos para que Feynoord e Benfica se encontrassem numa eliminatória fantástica.

Eusébio e Simões, Artur Jorge, Nené e Jordão. Que luxo!
Na época seguinte, o Benfica disputa a Taças das Taças e cai na segunda eliminatória frente ao ASK Vorwaerts da RDA.
O Feynoord defende o título de campeão europeu e sai humilhantemente logo na primeira eliminatória às mãos do desconhecido UT Arad, da Roménia. Apesar disso, o domínio holandês mantem-se e é o Ajax que vence essa edição do Taça dos Campeões.
Em 1971-72, Benfica e Feynoord estão outra vez na mais brilhante de todas as taças. E vão cumprindo a sua obrigação: 1.ª eliminatória - Benfica-Wacker Insbruk, da Áustria (3-1 e 4-0), Feynoord-Olympiacos Nicócia, do Chipre (8-0 e 9-0); 2.ª eliminatória - Benfica-CSKA de Sófia, da Bulgária (2-1 e 0-0), Feynoord-Dínamo de Bucareste, da Románia(2-0 e 3-0)...
Nos quartos-de-final, eis que se encontram. Dia 8 de Março de 1972, em Roterdão. Um jogo desvairado. Jimmy Hagan era o treinador do Benfica; Happel continuava à frente dos holandeses.
Logo no segundo minuto, Jordão isolado perde a hipótese de adiantar o Benfica. A primeira parte dos encarnados é excelente, dominando o jogo e o adversário. Jaime Graça, Eusébio e Simões, Artur Jorge, Nené e Jordão são as feras à solta pelo meio da defesa holandesa. Que ataque de luxo! Mas a segunda parte traz um jogo diferente. O Feynoord apresenta-se melhor em termos físicos. Carrega sobre a baliza de José Henrique que sofre a bom sofrer. Há seis cantos consecutivos contra o campeão português e, num deles, aos 50 minutos, Van Hanegen obriga o gato a defender para a frente e para a recarga fatal de Laseroms. Eusébio ainda tem uma boa chance, de cabeça, no minuto 62, mas será o 0-1 a transitar para Lisboa.
Dia 22 de Março a Luz rebentava pelas costuras duas horas antes de o jogo começar. O Benfica perdera Simões que partiu um braço na véspera. Ernest Happel, o austríaco que treinava o Feynoord não perdeu a hipótese de se lançar numa guerra psicológica agressiva, apelidando o Benfica de «equipa de província» e considerando que «não tinha qualquer hipótese de se apurar para as meias-finais». Cedo falou.
Com Eusébio e Toni no meio-campo e Nené, Jordão e Artur Jorge na frente, a equipa comandada por Jimmy Hagan era uma máquina de fazer golos. À meia-hora já o Benfica virara a eliminatória com golos de Nené e Jordão. Mas Shoemaker fez o 2-1 a 15 minutos do fim, deixando o público da Luz em suspenso. Nené faz o 3-1 aos 81 minutos; Jordão o 4-1 aos 87; e Nené os 5-1 aos 89. Um massacre terrível que dobrou a soberba de Ernst Happel.
Há quem diga que foi o melhor jogo da carreira de Toni. Talvez. Hei-de perguntar-lhe.
O Benfica não chegou à final, que se realizou precisamente na Banheira de Roterdão. Foi eliminado pelo Ajax nas meias-finais (0-0 e 0-1). Mas nessa noite de Março, as papoilas saltitantes espezinharam as tulipas."

Afonso de Melo, in O Benfica