terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O guarda-redes dos guarda-redes

"Possuidor de uma audácia singular, um enorme espírito de sacrifício e uma generosidade sem limites, Manuel Bento é, para muitos, o mais carismático guardião de sempre do futebol português.

Quando tive de pensar o rol de conteúdos do nosso Museu, uma das ideias que primeiro se me impôs foi a d' «O meu onze». Uma plataforma para os visitantes poderem escolher a sua equipa de sempre, partindo dos ídolos de todas as épocas.
Quem vem hoje ao Museu dispõe efectivamente dessa possibilidade e os resultados estão lá, em permanente actualização. Nalguns casos, reflectindo a escolha dos participantes, noutros, não.
Ora, é mesmo aí que eu quero chegar. Na parte que me toca como adepto, sinto um misto de surpresa e desilusão por não ver na baliza desta equipa intemporal o meu querido Bento. Está lá o Preud'Homme, que igualmente admiro, tal como o 'Zé Gato', que ainda vi actuar, ou o lendário Costa Pereira, que é no mundo dos guardiões uma espécie de deus perfeito.
Claro que não me passa pela cabeça contestar as escolhas do público. Mas deixem-me lá afirmar, só desta vez, que o glorioso Galrinho é o guarda-redes dos guarda-redes.
Talvez possam acusar-me de ter com ele estabelecido laços fortes através das cadernetas de cromos e dos jogos de caricas; de inúmeras vezes, lhe ter vestido o bigode nas peladinhas de rua; de me ter deixado repetidamente hipnotizar com as suas saídas à Kamikaze, ora pelo chão, ora pelas alturas; talvez possam acusar-me de ter sonhado com ele a meter golos de penálti na União Soviética e a decidir, com um destemor só seu, eliminatórias europeias; de o ter visto demasiadas vezes a colocar a bola, com a precisão de um basquetebolista, lá bem adiante, nos pés do Chalana; talvez possam acusar-me de concordar com a ideia de que passou a carreira a desmentir as pernas de alicate e a estatura pequena com pulos mais altos e velozes que os de um saltador à vara; talvez possam acusar-me de propaganda, mas deixem-me lá dar vida a esta página com quem me ajudou a semear valores como a audácia, o espírito de sacrifício e a genoridade nos meus sonhos de menino.
Do Riachense ao Goleganense, do Goleganense ao Barreirense, do Barreirense ao Benfica, do Benfica à selecção nacional. Guarda-redes dos guarda-redes? Bento! Manuel Galrinho Bento! Quanto à sua história, ela está mais do que contada e eu não vou querer acrescentar-lhe um ponto. Ponto.

Manuel Galrinho Bento
Golegã, 25 de Junho de 1948 - Barreiro, 1 de Março de 2007
Épocas no clube: 20 (1972/73 - 1991/92)
Jogos: 636
Títulos: 8 Campeonatos Nacionais; 5 Taças de Portugal; 2 Supertaças; 6 Taças de Honra
Internacionalizações: 63"

Luís Lapão, in Mística

Só o Benfica!

"Regressado das Américas, cheio de fama e troféus, o Benfica desceu à Baixa de Lisboa para um autêntico banho de orgulho clubista e fervor colectivo.

Naquele tempo estavam ainda por nascer o papamóvel e a limusina descapotável que levaria Kennedy à desventura, no coração de Dallas.
Mas nas artérias de Lisboa corria já outra fé, outro sangue.
É de aceitar que, à semelhança de outros momentos na nossa história, terá sido um misto de crença comum e consanguinidade o que levou todos os bons chefes de família da capital a abandonarem tudo naquela noite, adivinhando-se, nesse tudo, as mães, os filhos, as sogras e as esposas.
Na verdade, a primeira coisa que me vem à ideia quando ponho os olhos nesta admirável fotografia de 1957 é o magote de esposas e famílias que foi preciso abandonar naquela noite por causa de m amor maior chamado Benfica.
Regressado das Américas, cheio de fama e troféus, teve imperiosamente que desfilar entre o povo, como se de um rei se tratasse.
Depois de África, em 1950, e da América Latina, em 1955, o agora campeão nacional e vencedor da 'Taça' encerrava assim, em clima de festa, mais uma grande digressão, desta feita ao Brasil e aos Estados Unidos.
Era já um Benfica sem fronteiras, conquistador! E assim os heróis em carne e osso desceram à Baixa no fabuloso Somua, de fabrico francês, para se banharem copiosamente de fervor colectivo e de um inevitável sentimento de irmandade.
A segunda coisa que me vem à ideia é novamente uma questão de género. Intrometida no meio de mil homens, uma mulher!
Naquele cenário tão fortemente masculino, que Joana d'Arc era aquela que teve a audácia de se montar à garupa do esplendoroso cavalo de lata com uma Reflex na mão?
Não tendo maneira de esclarecê-lo, resta-me a esperança de que esta página desperte a memória de algum leitor mais informado.
Até lá, vou-me ficando pela reacção simplificada de meia dúzia de pessoas a quem mostrei a imagem e que, tendo em conta o padrão sexista daqueles tempos, concordaram que 'só o Benfica!...'

Foi assim...
Jornada gloriosa
Durante a digressão, que durou mais de um mês, o Benfica disputou 11 jogos, tendo registado cinco vitórias, quatro empates e duas derrotas. Em golos, 31 marcados e 14 sofridos. Pelo meio, o embate com grandes emblemas do futebol brasileiro, como o Flamengo, o América, o Santos e o Palmeiras."

Luís Lapão, in Mística

A conquista de Apolo

"Em 1957, uma vitória por 3-0 sobre o Palmeiras, em São Paulo, deu ao Benfica o Troféu Saturnia. O triunfo constitui, desportivamente, o ponto alto de uma digressão ao Brasil e aos Estados Unidos.

Quando espreitaram de um ónibus fortuito os arranha-céus de São Paulo, estavam longe de se imaginarem conquistadores do Pacaembú.
Nesse momento anfiteatral, digno de Roma ou Atenas, tinham já rubricado, dois anos antes, um honroso 2-1. Glosando esse facto, a imprensa local falava agora em revanche. O adversário era o Palmeiras, recém reforçado com o grande Formiga.
Vinda de boas exibições, frente ao Flamengo de Zagalo, e ao Santos, de Pelé, bicampeão paulista, houve quem visse na nossa equipa uma das melhores estrangeiras que até então por lá se exibira. Os elogios, porém, não impediram que outros olhares lhe profetizassem com os bandeirantes uma derrota rotunda.
Foi neste clima entremeado que os 'manuéis' de seu Otto desembarcaram no duche escocês do Hotel Esplanada, onde foram pensar na melhor maneira de enviar para Lisboa o Troféu Saturnia.
Corria o ano de 1957. Veio a hora do tira-teimas a 25 do mês de Junho. Dominando o jogo desde o primeiro ao último minuto, os benfiquistas brindaram Formiga e companhia com um carinhoso 3-0 e os cumprimentos de José Águas, que fez hat-trick.
No final, estalejaram foguetes. Houve volta de honra. O estádio inteiro aplaudiu de pé.
O deus Apolo, que dava corpo ao Saturnia, foi circulando entre mãos, vestindo de música e poesia, como lhe era próprio, a epopeia encarnada.
Já se perfilavam no horizonte São Salvador e Recife. Mais ao longe, Fall River e Nova Iorque, ansiando a estreia dos campeões portugueses nos Estados Unidos. No dia seguinte, enquanto se passeavam pela cidade e faziam compras, os paladinos do Pacaembú cruzaram um mar de felicitações. E assim seguiram, de humor adequado, em direcção à Baía. Terra de felicidade, espécie de Ilha dos Amores, recomprensadora, onde, segundo escreveu no seu diário o jogador Calado, 'as morenas frajolas eram aos centos'."

Luís Lapão, in Mística