"(José Maria Nicolau)
Enraizado no imaginário popular, José Maria Nicolau difundiu como poucos o sentimento da 'mística'.
José Maria Nicolau, já de si, era um nome de género redondo. Uma promessa sacrossanta. Nicolau era o dinástico, de perfume czarista, com um ditongo folgado no fim, que puxava por ele em cada estrada de Portugal:
'Vai, Nicolaaaaau!'
Nicolau ia. Como nenhum outro. Viam-no passar os moinhos de vento. As oliveiras e os favais. As casas rústicas. Os aguadeiros e os proprietários abastados. Os sobreiros e as vinhas. Os solares de granito. Os cantoneiros e as pegas. As lavadeiras e as meninas das herdades a cheirar a verbena. Os polícias e os pedintes. Os guardas fiscais e os contrabandistas. Os amantes. Os amoladores e os padres. Os carroceiros. As mulas e as moscas. A canalha, vestindo-lhe a pele, a conduzir pelas veredas um aro ferrugento com uma vara de sabugueiro.
'Vai, Nicolaaaaau!' Nicolau ia.
Como nenhum outro. E, quase sem se dar por isso, foi-se-lhe imperiosamente constelando o peito.
Lenda ou realidade?
O imaginário lusitano espelhava-se nele, que era epopeia a pedal. As costureirinhas disputavam-no, folhetinescas, pespontando-lhe os músculos com olhos-agulha, à Greta Garbo. Os mesmos músculos que era querer. Os mesmos músculos que eram asas e transformavam em nuvem veloz a sua máquina de 14 quilos.
José Maria descansava ao sábado. Nesse dia, sairia à rua com uns sapatos engraxados, talvez os únicos que lhe não conheciam a bicicleta. Nesse dia, teria à mesa, sobre uma toalha quadriculada, vermelha e branca, arroz de tomate e carapaus fritos.
Junto à janela da marquise, forrada a cortinas com rendas de bilros, talvez morasse um canário, de camisola amarela, chamado Ciclista.
No dia seguinte, José Maria arrumava os sapatos e a lata de graxa por mais uns dias. 'Vai, Nicolaaaaau!' Nicolau ia. Como nenhum outro. Correndo nas veias de um Portugal a preto e branco às cavalitas da cor vermelha do ditongo."
Luís Lapão, in Mística