terça-feira, 11 de dezembro de 2012

PUM!, ou o silêncio

"Terá feito PUM!, suponho. Quero dizer: o tiro. Alguém deve ter ouvido. Um tiro num WC não soa no vácuo. Isto é: digo eu, porque informação não há. Diz-se que foi no WC; diz-se que foi um tiro. Os jornais não têm letras, as televisões não têm imagens, as rádios não têm voz. Um tiro provoca perguntas: quem foi?; por que foi? Ninguém responde às perguntas. Pior ainda: ninguém faz perguntas. Fazemos nós, cada um por si. Mas não fazem perguntas aqueles que tinham como obrigação profissional fazê-las. O silêncio é grosso: envolve um estádio, envolve uma torre de escritórios, envolve um clube. Misterioso clube esse, que vive envolto em silêncios apenas interrompidos pelas tiradas imbecis de um velho escroque.
Consta-se que a polícia abriu inquérito, desenvolveu investigações. Mas não se sabe ao certo. O silêncio também tomou conta da polícia. Há conclusões? Há relatórios? Vá lá saber-se. O poço é fundo, muito fundo. Certo dia, a certa hora, ouviu-se (parece...) um tiro. Houve um morto, pelo menos houve rumores de existir um morto. Quem o matou? Ele próprio ou mão alheia? Era um morto que incomodou enquanto vivo? Era apenas um cavalheiro solitário sem razões para viver? E a arma? Não há tiro sem arma. Isto é: não costuma haver tiro sem arma, mas talvez estejamos perante um universo diferente, difuso, no qual as razões e as consequências não coabitam no mesmo espaço. PUM!, ouviu-se no edifício, no estádio, suponho. Ninguém quis verdadeiramente saber. Ignorem, desvalorizem, não passa de um homem morto... Há lá coisa mais banal do que um homem que é morto? A quem convém o silêncio?, já perguntei aqui. E respondo de novo: o silêncio convém aos criminosos. Já ninguém ouve um tiro no silêncio...

P.S. - Depois de uma morte, outra morte. Parece que para certa gente as mortes são banais. Aconteçam num WC ou numa estrada. Não lhes pesam na consciência: é coisa que não têm."

Afonso de Melo, in O Benfica

Aquela tarde em Belém do Pará na qual Lagardére não largou Pelé

"Talvez a marcação que Vicente fez a Pélé tenha ficado na história do Futebol português e registada da lenda. Mas, se calhar, pouca gente sabe que também José Torres, o «Bom Gigante», teve um dia que marcar o «Rei» por ordem do treinador do Benfica, Fernando Riera

«Desejou bons dias e pôs-se a andar. Firmino ficou a vê-lo a afastar-se. Era baixinho, com um tronco grande de mais para umas pernas muito curtas. Curiosamente lembrou-se de um outro Torres. Mas a esse, nunca o conhecera, só o vira em imagens da época, na televisão. Era um Torres muito alto, que fora o ídolo do seu pai, o Torres que jogava como avançado-centro no Benfica dos anos-Sessenta. Não sabia jogar, dizia-lhe o pai, mas bastava-lhe esticar a cabeça e zás, a bola entrava na baliza sozinha»
António Tabucchi, «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro»

lá vão uns anos, mais de dez anos, certamente. José Torres estava doente, mas ainda não tinha mergulhado naquele Mundo só seu e no qual viveu até à morte, distante de tudo, alheio às pessoas e às coisas, preso dentro da sua própria cabeça.
Abriu-nos a porta e ai ficou no ar a sensação de que a porta era pequena demais para ele. Talvez não fosse, mas nestas coisas das imagens a memória não perdoa. Regista-se a elas ficam para sempre, é assim que o recordo - também foi assim, pelos vistos, que António Tabucchi o recordou. Uma fotografia em movimento: Torres meio debruçado, meio curvo, claro que não era da porta, era dele mesmo, foi o tempo que o encurvou como costuma fazer, geralmente, encurva-nos, às vezes apenas por fora, outras até por dentro, a ele haveria de encurvar de uma maneira e de outra.
Lembro-me de mais coisas: o facto de as ter escrito ajudam-me a recuperar os momentos. Tinha um cãozinho nervoso sempre aos saltos em volta dos calcanhares, tratava-o com carinhos de bondade, havia nele sempre um toque afável nos gestos e na voz, deve ter sido por isso que lhe chamaram um dia o 'Bom Gigante'. Visitei-o para uma entrevista, para que me fornecesse lembranças, desafiou um rol inesgotável delas, falando sem azedumes de tanta gente que ainda era viva e de outra tanta que se fora.
Apontou as paredes da sala, descreveu as fotografias aí dependuradas, abriu as gavetas onde guardava as camisolas de embates homéricos, a do Inter na final de San Siro, a da selecção portuguesa do Mundial de 66, e a jóia da colecção, a do Rei Pélé, trocada no final do inesquecível Portugal-Brasil quando, como escreveu Carlos Pinhão, se deu a 'grande vingança da bola quadrada'. E lembrou-se e contou: 'Tinha combinado com o Pélé antes do jogo que, quando ele acabasse, trocaríamos as camisolas. E não foi nada fácil, como podem calcular. Ficámos apurados para os quartos-de-final, o Brasil estava eliminado, foi a maior confusão, todos queriam a camisola do Pélé, mas o trato tinha sido feito e foi cumprido'.
Exibiu o troféu. Nesse tempo as camisolas eram de pano e, por isso, mostrou-nos uma camisola pequena, quase uma miniatura, encolhida pelas lavagens e marcada pela voracidade das traças que não respeitam sequer as peças de museu. 'Vou-lhe contar um episódio que muito pouca gente conhece', disse subitamente, como se uma imagem lhe tivesse assomado sem avisar à janela do espírito. Descreveu: 'Um dia, em Belém do Pará, tive que marcar o Pélé. Era habitual que, nos treinos, eu actuasse muitas vezes de trás para a frente, vindo ao meio-campo ajudar os companheiros nas manobras defensivas, o treinador, que o Fernando Riera, conhecia bem essa minha característica, antes desse Benfica-Santos que se disputou em Belém chamou-me e disse-me que a minha função seria marcar o Pélé. E assim foi durante toda a primeira parte e, durante toda primeira parte, o Pélé não teve praticamente uma oportunidade de golo. Mas, com o decorrer do jogo, o Eusébio começou a gritar comigo, a mandar-me avançar no terreno, a dizer que precisavam de mim lá na frente para acorrer aos lances de cabeça, acabei por me adiantar e deixei a marcação que estava a fazer, e não querem lá ver que, poucos minutos depois, o Pélé fez um golo e por sinal um golo verdadeiramente fantástico!'
Ah! Pois... falta explicar o Lagardére. História simples. José Maria Pedroto, seu treinador no Vitória de Setúbal, pôs-lhe a alcunha. Lagardére: «Eu era o homem que saltava do banco para dar a 'estocada final'», contava José Torres. Corre hoje, naquela sua passada inconfundível, na planície da eterna saudade."

Afonso de Melo, in O Benfica